Discreto

Discretamente
eu não me aborreço com pouca coisa,
minha alma recolhida, não se acolheu em n’uma outra

Discretamente
vejo tudo passar
todos passam com seus egos,
seus belos rostos,
seus sorrisos frouxos,
seus corpos próprios
seus apegos falsos

Discretamente
minhas vestes não investem
em status social
tudo passa com seus perfumes,
grifes, meias, cuecas, calças,
capas, acatas os rótulos

Discretamente
a gente se sabota
com medo do sonho ser real,
e me desacata

Discretamente,
tudo ganha resignificado,
desdobrado em decepções
desajeitadas que se rasgam
dia a dia

Discretamente,
do jeito que eu te observo,
você não me olha,
não me importa se me vê

Discretamente,
eu vivo dando importância
ao que minha vida pede,
esse ser poeta
se interessa
pelo discreto da vida

Meu sorriso se completa
quando você passa por mim
e quando a gente se dá as costas
em direções opostas
discretas histórias…

Nenhuma cobrança

Você inventou muitas teorias
para se afirmar na prática,
tem muitas respostas na ponta da língua,
e doa hipocrisia de graça

Você sempre comenta que está vivendo a vida,
descobrindo o mundo, diz que está pronto pra tudo,
mas, eu sei que é só fala, fala, fala

De tudo: atitude, falta muito,
e não é nenhuma cobrança,
você insiste em se vender como adulto,
mas, se troca com criança

Faz caridade falsa e se ilude,
achando que pode ajudar o tempo inteiro,
não percebe que cercado por todos os lados,
os outros também, rasteiros, aprendem sós.

De tudo: atitude, falta muito,
e não é nenhuma cobrança,
você insiste em se vender como adulto,
e eu não compro confiança

Você inventou muitas teorias
para ter algum lugar social,
para ser aceito num grupo,
cercado de alguns perdidos teóricos,
pensando ser um achado

De tudo: atitude, falta muito,
e não é nenhuma cobrança,
tem gente que não quer sair da cela criada,
presídio de segurança máxima,
nem recebendo fiança

O incapaz

Eu sou o incapaz do século 18
negro escravizado que não viam como gente,
eu sou o incapaz do século 19
criança e mulher, – velho até – da jornada de trabalho absurda
eu sou o incapaz do século 20,
mulher, subjugada, incompetente para o alto cargo
Eu sou o analfabeto do século 21 que assina com os dedos,
sou o deficiente ainda visto como o doente merecedor de cuidados,
subestimado como o coitado da assistência social,
superestimado como o super-herói que venceu,
o exemplo, fora da curva.

Eu sou o começo de luta
que não podia votar,
não podia usar calça jeans,
não podia sair de casa,
não precisava estudar,
sustento que venha de terceiros

Eu sou o que não aceitou
o fato de ser menor ser humano,
fadado ao fracasso social
certo do destino ingrato traçado

Eu sou o incapaz
de aceitar a incapacidade posta
pelos capazes que sempre viraram as costas
do alto de suas concepções de merecimento

Eu sou o incapaz
de aceitar o farelo merecido aos porcos,
doado aos poucos,
pelos próprios incapazes
de ver a vida na sua plenitude

Eu sou o incapaz de não escrever sobre isso,
sou o incapaz de não ter atitude,
aquele grita mesmo, que fala ríspido e rápido
para ver se me respeitam

Eu sou aquele incapaz de engolir a demagogia
dos espaços das cotas de pouca representatividade,
eu sou a incapacidade da arte não decifrada,
eu sou o que não se dava por nada, – e surpreendeu –

Eu sou o esforço que não cedeu,
vencido pelo preconceito – jamais –
prazer,
– o incapaz

Substitutivo de saudade

Gosto de gente que tem caráter,
que fala e sustenta a fala até o fim.
Gente que tem princípio,
quando diz sim é sim,
daqui cinco minutos ou cinco anos
 
Gosto de gente que questiona,
que rebate, que argumenta,
gosto de gente atenta e de olhos abertos,
de gente do tipo esperto, ligado,
capaz de desconfiar das intenções terceiras
 
Gosto de gente parceira
que não vai me jogar na fogueira
na primeira oportunidade
 
Gosto de gente certa por completo,
que não olha o nome do processo,
e fica fazendo média
 
Gosto de gente que erra tentando acertar,
e se assume, e se corrige, e se retrata também.
Gosto de gente que, como ninguém, sabe falar o necessário,
sem ofender, sem criticar demais por puro desprezo,
gosto de gente sem rodeios, que diz o preto no branco,
sem enfeitar, sem os floreios
 
Gosto de gente que não assina embaixo sem ler,
gosto de gente que revisa, sugere, suprime e acrescenta,
gosto de gente que ensina sem arrogância, aprende sem prepotência,
gosto de gente que pede da paciência à clemência sem perder a autoridade,
gosto de gente que fale de moralidade, praticando,
gosto de gente que comenta de impessoalidade sem olhar o sobrenome
gosto de gente, de gente, gente, que assume a figura pública
sem perder a particularidade.
 
Gosto de gente, de muita gente,
de gente que ficou insubstituível
no substantivo saudade.

Imenso amor

Eu acho que a gente já entendeu
que no nosso caso, o amor não é um acordo,
entre seu corpo e o meu, nem entre seus olhos e os meus,
nem sobre seus desejos e os meus

Eu acho que a gente já entendeu
o significado firme e forte,
o elo que nos une além da morte,
a sorte dos nossos reencontros
no tempo e no espaço,
e no estado de paz

Não é questão de falar sério,
ou, de pensar mais a frente na eternidade,
é mais simples, porém, mais sólido,
é a certeza da segurança, da grande confiança
que a minha voz não fala, que a sua timidez não deixa,
é, em certa medida, a vergonha que a gente pragueja no íntimo

A questão é que a gente tem muito a dizer
de forma leve e divertida,
são os sonhos que brilham na esquina da alma quando a gente viaja
nos nossos planos de muito tempo pra frente

A questão é que eu sou parte de você,
e você, parte de mim; sabendo,
que o que parte de mim pra você
é imenso amor

É imenso, amor
o que nos conecta,
o que nos trouxe até aqui

É o nosso aprendizado contínuo,
sabendo que a gente se merece
e que o mundo nos amadurece
para a gente se receber lá na frente
meu presente, eternamente.

É imenso, amor
o que o meu coração agitado decifra,
o que a minha mão quando aperta a sua sente,
é a fala, que quando sai, vai tão trêmula,
mas, mas, não insegura do que eu preciso

É imenso, amor
o que eu tenho confirmado, é bendito,
saber que seu abraço ainda tão pequeno, é vivo,
é imenso, eu insisto, o que a gente vem descobrindo sem pressa

Que nesse mundo, não adianta ser presa dos outros homens,
eu sou um grande homem, querendo o mais honesto dos sentimentos
com um pequeno homem, o melhor dos pares que nem milhares de caras
serão caros de significado da aliança que só você se fez – e me deu.

*Para Hiago Tavares

Matilha

Não me leve a sério,
eu não me quero sério,
sério, eu cheguei aqui pra rir,
e confundir, sou ser mistério

Sinto muito, se com você eu não tenho elo,
meu bem, minhas atitudes tão rudes,
meus passos, tão impiedosos,
eu sei que o medo está nos seus olhos,
eu sei que seus ossos estremecem em receio

Ceio a sua ansiedade com risada,
a sua praga anunciada não cola em mim,
enquanto seu santo aprendeu a retardar meu passo,
o mundo inteiro, dos deuses gregos até a macumba elétrica,
corre pra cima de mim, pra me proteger

Enquanto você me observar como aquele que deve respeito, tudo bem;
não sou ninguém melhor, o pior é você quem constrói;
não sou feroz, perto de você sei rosnar,
o medo de morder te  fez fugir, e eu, ri,
ri porque você corre em vez de me encarar.

É por isso que a matilha se convenceu
que eu sei liderar,
a alegria de contar,
a conta-gotas,
você não sabe brincar,
porque me leva,
me eleva – sério –
me leva a sério.

Educando

Prazer,
eu sou gentil,
o senhor foi bem atendido?
Quer uma água, um café?
Posso ajudar em alguma coisa?
Se eu não souber, vou aprender contigo.

Obrigado por tudo que tem feito,
eu sei que o cuidado, além de raro, é suprimido.

Deseja mais alguma coisa?
Volte sempre que quiser,
venha fazer uma visita!

Claro que eu posso parar,
isso aqui pode esperar,
tenho a mão estendida.

Claro que pode trazer,
é um prazer, de novo.

Não, não se preocupe,
vou procurar saber.

Imagina, não me traga nada,
desculpe, não posso aceitar,
estou aqui pra isso,
não vou barganhar o meu atender

Porque, no meu entender,
serviço público não tem cliente,
sirvo ao povo, cuido de gente

Sinto muito, não se queixe,
não se deixe abater pela vida,
fico feliz, com seu sorriso, no fim,
mudei a rota do seu dia

Não por isso, não por mim,
eu sou assim, simpatia e acolhida.

Cuida da sua mãe,
vai procurar um médico,
claro que vai dar tudo certo,
boa aula, não se irrite com a vizinha

Tente sim… essa possibilidade…
não garanto, só tenho boa vontade,
se errei, me desculpe, não sou perfeito

Perfeito, perfeito
que bom que me entende,
pede licença sim,
se tem direito

Estude novamente,
se puder ler com cuidado,
esse item aqui é bastante claro,
não, eu não falo pra prejudicar,
se você observar, não vai ser dessa vez

Mas, enfim, se você não puder ir,
vou anotar aqui, e entro em contato,
procura o meu outro colega,
que essa parte, quem dera, mas eu não posso fazer

Não corra, dá pra resolver mais fácil,
vem, senta aqui do meu lado,
vamos fazer o passo a passo,
pronto, efetuado.

Está lá, vai buscar, mandei imprimir,
até mais ver, até qualquer hora,
passa aqui outro dia pra me dizer se deu certo,
certo, certo, certo, não precisa agradecer

Eu vou sentir falta de você,
mesmo aposentado.

Ah, e no seu tempo…

Toma. Lá, não precisa dar cá.
Além de um prazer, foi um agrado.

Por ter feito tanto, quer só uma via?
O que o senhor não via?

Prestigia, o aprendizado.

Solzinho

É meu pequeno príncipe,
minha história infantil preferida,
meu amigo, minha companhia,
meu sincero verso, tão sutil,
tão singelo, meu guerreiro,
combatente, com você sou mais gente,
meu cuidado mais próximo, meu presente,
meu pensamento distante e próximo,
meu elo com a vida, sem solidão.
É meu sorriso mais simples,
meu brinde de fim de dia,
é minha primeira alegria na manhã,
minha ligação de cuidado,
é meu contato, meu comparsa preferido,
é meu abraço, meu abrigo, meu imprevisto,
é meu desejo mutável, meu fardo favorito,
é minha emoção, meu pequeno botão,
meu bordão, meu coração que bate feliz,
é tanto, o meu tudo, meu eco profundo,
meu viaduto para atravessar o escuro,
é passado tão recente, repito, meu presente,
enquanto eu tiver vida, meu futuro,
o amor causa esse impulso, tão parte de mim,
que me sinto seguro, mesmo tão instável,
é o meu silêncio imediato para não chorar no poema,
que diz tanto, na eternidade, sempre seu, sempre metade do Tavares

*Para Hiago Tavares

Renúncia

Eu não tenho tempo de falar de coisas tristes,
porque a minha ocupação é com o outro,
não tenho tempo para falar de sofrimento,
porque a minha finitude me lembra diariamente
o quanto eu ainda devo manter a mão estendida.
A grandeza da vida não está no quanto eu posso carregar de dor,
mas, quantos sorrisos eu sou capaz de abrir, tendo eu, tudo que preciso.
Uma luta ou outra – para alguns – é tarefa árdua, um peso a mais,
mas, pra quem faz disso a oportunidade, trata-se de crescimento, aprendizado.
Os fardos e os fartos do Eu, ditos em poema não amenizam coisa alguma,
mas, tornam a vida mais simples, mais bela, mais oportuna.
O poema, o ritmo, a rima, a palavra cadenciada,
tem o mesmo fardo da prosa, tão pesada, tão penúria.
Eu peço renúncia do peso da batalha,
eu peço renúncia da dor aguda,
eu peço renúncia da primeira lágrima,
eu peço, renúncia.
De tudo o que me cansa,
de tudo o que me causa gastura,
de tudo o que eu quero de fato,
eu peço renúncia.
Deixo para a vida o cuidado,
o toque do belo,
deixo para a vida o zelo,
o que for abençoado,
nessa vida tão simples, e tão singela,
eu quero o básico, o extremo necessário,
a catarse da quimera.

Luz

Seu carinho é aconchego simples sim,
de pessoa sempre jovem, sempre leve,
áurea de paz que o espírito leva,
não importa a idade que o corpo tem,
Parabéns, Silva Luz, Silvia Lúcia

Esse texto não é um poema,
é uma carta aberta em versos,
é a reverência simples, singela do poeta,
que agradece, por você, uma inteira, geração

Seu carinho, seu sorriso, seu jeito lindo
de viver a vida, de agradecer à vida,
de contemplar o belo, de acolher do jovem ao velho,
é a certeza de que o amor, o afeto, o zelo, o elo,
atemporal.

E se for chorar lendo esse cuidado com o próximo,
é óbvio que o temporal das lágrimas que estão caindo,
refizeram tudo o que foi poluído nos contratempos do caminho.

Erga-se, que Deus proteja, que conforte, ilumine, a eleve,
o ser que existe em você, exaltado porque, vou dizer,
nunca quis estar no alto.

É por isso que Deus abençoa, é por isso que o amor ecoa,
reverbera, sem berro, é por isso que o ponto de luz,
resplandece.

Canção de ninar

Conta uma história boa
para passar o dia de hoje…
conta uma história para acalmar as notícias ruins,
para cuidar da menininha…
que dorme, depois, na calmaria,
canção de ninar…

Para a mulher que não consegue parar durante o dia…
canta baixinho pra abençoar… sussurrando para proteger…
a menininha que de dia não sabe parar….
responde a tudo, coloca a mão na demanda,
para realizar…

E trabalha, e esbraveja, desbarateia,
é bravata a encorajar… a menininha que dorme…
ninguém diz… cuida de tudo, é a última, apaga a luz…
a menininha que dorme… fala baixinho pra não acordar….
porque de dia não dorme no ponto, engole os prantos…
que a alma vai gotejar…

Menininha que ri, faz graça, mas sabe se colocar,
responde doce… também responde ácido… se for o caso,
sei que ela não se cansa… enquanto estou aqui…
calado não posso ficar…
calado, não posso ficar… não posso ficar…
aquieta menininha… agora não precisa se preocupar…

Agora o poeta não brinca… fica em paz, querida…
canção de ninar…

*Para Mayahara Barcelos – Servidora do Instituto Federal Fluminense, colega de talentos fotográficos.

O convidado

Não lastime se as pessoas ao seu redor não caminharem o passo largo do progresso,
cada um tem sua missão e o tamanho daquilo que precisa enfrentar,
não cabe zombar, tripudiar, fazer piadas, é a mais alta farsa;

Se acha mesmo capaz de compreender o próximo, então aceita o limite dele.
Sabemos do desejo de progresso, por certo é nosso também, nessa esfera espiritual.
Mas, não importa a pressa, não importa se agora, daqui a pouco ou amanhã,
é o aprendizado que conta, não afronta, de nenhuma medida, a doutrina da vida.

Que é ela quem sabe, é ela quem rege o tempo,
a intensidade do firmamento, a profundidade do que toca aí dentro,
é ela – a vida – a escolhida como a mais forte experiência

Não julgue, não aponte, não critique, não deixe de olhar, de novo,
para a sua parcela de contribuição, para a sua parcela de amor,
acredite, tente, dê nova oportunidade, abrace, acalme-se,
cubra-se com a força que a vida deu, a capacidade de fazer a diferença,
entra, sem tocar nas feridas, sem tocar nas dores

Sabemos que você entende os recados, é canal de fato da nossa mensagem,
utilize toda a energia que sabemos movimentá-lo para fazer o elo, a ponte,
a costura, a ligação, para ser anfitrião do amor de Deus,
quando for convidado a participar da vida de outra pessoa

Valsa

Valsa a sua angústia que cruza as pernas, irada,
valsa a sua insegurança no firme passo acima do salto,
curve-se entre a direita e a esquerda, deixe-se seguir
com seus olhares tão precisos, aterrorizantes
tão impostos, feito frieza que não se deixa fugir

Valsa a sua ira cardíaca no suor tão escorregadio,
que a guerra entre o seu tronco e o meu contato físico
sufoca o seu espartilho, como um golpe para ver quem vence,
mas, o seu leve, leve e traz não se dá por vencido,
sussurra ao meu ouvido que o seu vício é a dança erguida,
arranha a minha carne viva, do pescoço à virilha,
queima viva viúva negra, como água-viva, em azul-turquesa,
como no fundo do mar

Valsa firme, convence sem pestanejar, é dona da cena,
alimenta a própria métrica, o próprio ritmo,
quando a sua dança, não mais dança, mas…
quer matar, quer matar, quer matar
para fechar o espetáculo, que vai…
continua, continua, nua, a me descortinar…

Signatários

Estou aqui para servir,
não às suas vontades,
não aos seus caprichos,
não sirvo aos seus afagos,
nem vivo de agrados,
servindo de pano de fundo,
fruto de ambições mesquinhas,
perdão

A serventia do serviçal,
colocada à prova, ao boçal,
não significa nada, apenas,
piada pronta;

É tanta a necessidade do (re)significar,
sinto-me resignar de reflexão íntima,
da utilidade pública;

Escuta, e desculpa, as minhas falhas humanas,
apresento-me ao erro, e reconheço,
meia culpa;

As pessoas inteligentes,
ditas cultas, um dia escreveram errado,
e assumiram a conduta, fizeram a meia culpa,
equívoco da labuta.

Assinaram abaixo e reiteraram:
quem muito escuta, pouco faz,
mas, acertadamente;
quem muito fala, pouco decide,
e, acidentalmente, erra.

Coloca-se nos devidos lugares,
os pares, signatários.

Goteja

Coração nobre, puro, cheio de vida,
de alma leve, sê forte, cativa,
poesia no gesto, na palavra modesta, bendita,
tem carinho nos olhos, pedra de turmalina,
tão antigo, amigo, que analogia nenhuma
pode ser suficiente, ainda que a lua fosse entregue,
não tem símbolo poético que se preze,
nem os milhares de corpos celestes,
do firmamento de prece da palavra abriga,
que saúda, e que venera, que corteja,
a poesia que hoje goteja pelos olhos
brota no fundo do poço d’alma companheira..

 

*Para Iago Santos

Há amigo

Há que se ter um amigo
guardado, escondido
no fundo do peito,
em lugar seguro
que ninguém descubra

Para que se possa contar,
mesmo quando muito tempo passar,
como se fosse o próprio confessionário particular

Há que se ter um amigo
que se possa ligar a qualquer momento,
para que se desabafe sobre as armadilhas da vida,
sobre as más companhias que a gente encontra no caminho

Há que se ter um amigo, um amigo-partilha,
que mesmo partindo, saiba onde nos encontrar
há que se ter um amigo que não me diga nada por anos,
mas que só ele saiba calar a dor de ser humano,
sem dizer palavra alguma.

Dê conta

Você afronta
depois, desgraçada,
acha que não dá conta
e eu, bancando a tonta

Faz de conta que a onça
não domina a floresta,
nesse mito do leão ser o rei da selva

Sei que você é do contra,
felina, astuta, caminha entre as tantas
sem se gabar, não mede esforços
enquanto os seus poros…
respondem que vão me dominar

Falta

Falta, se não chegar na hora certa,
falta, se não for ao serviço,
falta, se o dinheiro não cair na conta,
falta, se o médico remarcar a consulta

Falta, desconta na folha de ponto,
falta, um tanto para o fim do ano,
falta, um bocado para fechar o mês,
falta, uma conversa franca, forte

Falta, o espaço que você deixou em aberto,
falta, o olhar sincero que já me responde,
falta, a segurança que a sua presença me fornece

Falta, o amigo que caminhava comigo diariamente,
falta, o poema que a gente vivia dando risada,
falta, o dia a dia da piada pronta com a correia,
falta, a pausa do café, que frio, você aquecia

Falta, a nossa prece em grupo,
falta, alguém por perto que me diga:
“falta, você confiar mais em você” e,
“falta, nada não, segue em frente, vai, confia”

Falta, a simpatia que acalma o dia,
falta, o norte que você escreve,
falta, a sensibilidade da alma gentil,
falta, a falta que você nunca fez,
falta, a leitura dessa confissão,
falta, a sua presença faz, mas nunca ao coração;

Falta, acabei de fazer
falta.

Alimento para a alma

A calma de hoje
vem da passagem
da tempestade de ontem
– que revolta -, mexeu com todos os sentidos.

Das reviravoltas do tempo, que ontem me fez chorar,
dos revezes que a vida coloca, eis a sorte de sorrir de novo;.
A ferida aberta, fecha uma hora, passado tanto tempo;
uma hora, se não passar, passado será você.

Não carrega o ontem nos ombros,
não se pese com os acontecimentos,
seja livre, leve, eleve-se, entregue
o que for fora da sua competência;
a vida só te deu ciência,
não pediu pra você resolver…

Passa pra frente, deixa para o próximo,
cada um sabe o que pode fazer e como agir,
assim, é seu atributo, ser canal do mundo,
adubo de ajudas e contribuições.

A colheita, quem fizer, é o mais necessitado,
mas não sem antes preservar a terra,
cuidar da terra, semear a terra, preparar a terra,
ceder a terra, sem antes a intenção de reservar espaço,
para amar quem vai comer.

Paciente

É o poema o remédio da alma,
na expressão da arte da dose certa,
que alivia em prece reta
entre a vida e a experiência do poeta

São ampolas do tempo que se maneja,
e se manipula a palavra que escorre na veia,
são as correntes de energia capazes, sempre,
de aquecer o corpo e animar a alma

O poema pede calma, cama e repouso;
pede reflexão, paixão, mas repouso;
pede cuidado, pede zelo, mas repouso;
e por pouco, de pouso em pouso,
vai cicatrizando o que era sofrido

E no rito não atesta alta alguma,
nem permite afastamento algum,
mesmo em dias comuns, incubadora das letras,
vai recolocando na alma que escreve e que lê,
o parto e o renascer de um novo
paciente.

Tens sorte

Tens sorte
por ti, enfrentei a morte
sê forte, eu voltei
fui lorde

Tens sorte,
pedi a posse
dessa vida

Tens norte,
agora que eu voltei,
conforte, que nasci

Tens sorte,
que fui atendido,
demorei a te encontrar,
nesse mundo perverso e sofrido

Tens sorte,
que te achei, ainda cedo
com a ilusão de apenas uma vida

Tens sorte,
que a gente se ame
tanto e muito forte
nessa vida, nessa vida,
nessa vida, e nessa vida,
tens sorte…

Casa cheia

Faço um gesto
ambidestro
saia pela direita
saia pela esquerda
me deixa
dançar com outro par

Sei quando não sirvo mais pra dançar,
eu nem encaixo mais com seus passos,
outrora, tão cadenciados…

A nossa coreografia já não tem o mesmo compasso,
já desalinha quando eu me refaço dos seus laços,
ensaio já não me reserva nenhuma dor
quando a gente tenta o mesmo número desgastado

É o fim do espetáculo
já tão visualizado…
o artista quando cansa da turnê,
encerra o espetáculo

Saia pela direita,
saia pela esquerda,
escolha o seu lado

Eu vou pelo centro
cumprimentar o público,
mesmo de saco cheio
da casa cheia…

Voltei sem ir

Por confiar na vida,
no que eu sinto,
e no que sei ser verdade,
confio em mim também

Confio em você
toda vez que me diz,
com a sinceridade nos olhos,
com a expressão da verdade,
mudamos de vida

E que bom quando você me inclui no plural,
e eu penso em você em dois, em numeral,
quando a preocupação é de carinho
que a verdade do amor que cuida, conhece

E quem ama de verdade, não precisa de prece,
porque já se guia no bem, e você sempre será, meu bem,
e eu sei que sempre me quis, seu bem, mesmo sem saber como agir

Por mais que tudo mude de rumo,
nossas curvas se encontram de novo,
é um ir e vir, arrumo desculpa para partir
sabendo que ali na frente tem sempre placa de retorno

Retorno, dolorido e culposo,
voltei pra sua vida de novo,
e de novo, e de novo

Porque não há saída para o outro
que encontra o amor, não há;
é um eterno conquistar-se no outro,
e no outro se deixar ir um pouco,
de novo, de novo e de novo…

Estrutural

Não quero nada que fira a minha integridade,
de verdade, sou de safira, em uma parte.
Comprometo-me com o mundo, mas, a essência,
não tenta mudar, não seja covarde…

Tem uma parte do meu espectro
que eu não nego, não abro mão,
sinto dizer que eu não caio em contradição

Sou de várias frentes, muitas formas,
maleável, a verdadeira caixa de Pandora,
mas tem um eixo, a espinha dorsal
que me sustenta desde o meu ancestral…

É o meu norte, o meu ideal,
minha concepção humana,
visão de mundo, mudo tudo,
menos o que me é estrutural…

Teu amigo

Quem retorna ao teu afeto,
afeta o teu afeto novo
porque, veja, um afeto antigo
quando permanece invicto ao tempo
há tempo paralelo, afeto atemporal

Quem retorna ao teu abraço,
abarca e alarga o teu sentido,
sentido de alegria ou tristeza,
sentido há no retorno

No entorno da lembrança,
ânsia de um tempo interrompido,
um hiato que não deveria ter tido

Quem retorna ao teu carinho,
separa o joio do trigo,
quem lembra de ti de fato
é seu verdadeiro amigo