Arde de arte

Deixe-me estudar a sua fisionomia,
cada particularidade dos seus traços,
cada detalhe das suas marcas de expressão,
eu não sou nem um pouco são!

Deixe-me detalhar cada caminho,
cada loucura que eu desdobro
apenas em olhar os olhos,
e ver sobretudo o mistério

É isso que eu quero de você,
um motivo de imaginação,
eu quero viajar nas minhas concepções
do que a arte pode fazer só na observação

Os seus olhos estão com um resquício de saudade.
Você tem chorado cada vez menos por quem amou,
mas ainda há calor que precisava ser externado,
um carinho que foi guardado e não se entregou…

Eu nem poderia ver tudo isso em dois olhos apenas,
parece até que quem tem mais olhos sou eu,
vejo fundo o que não deveria ver, desculpe a intromissão de ser
poeta, abusado, um transloucado de seus sentimentos

Cansa-me também divagar sobre atitudes que não me pertencem,
ah, como se simplesmente seu cruzamento de braços
pudesse me dizer que você não quis ir ao outro lado da rua,
apenas pelo gato preto com fome e assustado que ali estava

Acho mesmo que a loucura me consome, e eu fujo de tudo,
eu nem sei sequer seu nome, como posso falar de você?

E ainda me dão crédito, ainda validam as minhas andanças…
Certa vez olhei uma criança de colo, e previ com ousadia
que ela seria a agonia de seus pais simplesmente por ter,
traços de quem gostaria do mesmo sexo

Pode tudo fazer sentido, ou ser completamente sem nexo,
não fosse você também um mergulhador em meus loucos versos,
um apaixonado pela arte que arde da vida, da vida que arde na arte

Umedeça

Quero dar um beijo na sua face,
sem compromisso e sem cobrança
como se fossemos apenas duas crianças
descobrindo a pureza do amor simples

Depositar em seu rosto um delicado molhar
o líquido que transbordou de um coração,
apaixonado e encantado com a vida

É só isso, um beijo básico mesmo
que sugere à interpretação dos sensíveis
qualquer conotação mestra da subjetividade
que mexe com mais que apenas duas mãos

Representar a atenção ao amor pequeno
de duas crianças sem malícias, sem maldade,
uma definição que o amor dos grandes desconhece

Na sua pele, que os poros se refresquem
com a sutileza que se preze aos sinceros,
que seja brisa leve, que não o aqueça,
nem te enrubesça, mas que te emudeça
até o pensamento mais sublime

Dança do agora

Eu quero um passo
ritmado contigo,
entrelaçar nossas pernas
coisa simples, não fosse
isso um poema, mesmo fosco

Vou representar aqui
o fim do fim do fundo do poço,
chega de ladainhas, vamos dançar,
à tarde mesmo, não preciso da noite,
das estrelas, nem do vinho

A poesia é um ato de alegria,
grande coisa essa tal boemia,
triste, sinto muito, por aqueles
que precisam sentir muito,
sofrimento não combina mais comigo

Em dois pares de pernas que se cruzam,
cruzam-se eras, arqueologia do amor,
seu macaco por mim se apaixonou
antes sequer de aprender a acender o fogo,
só depois de milênios ele ascende sem fim,
você sente isso em mim?

Não importa se já acabou a música,
eu cantarolo contigo no olhar,
e isso aqui já não é mais uma dança,
mas uma cobrança do amor que por séculos se esquivou

Alta velocidade

Não me interessa seus caprichos,
coisas de um bicho bem adestrado,
destes que são mimados até para deitar no caixão

Tudo é cuidado, tudo é proteção sem sentido
não me interessa a sua orientação, não importa;
Coisa banal demais se você tem carro do ano, coisa e tal

Tomara que seja multado, reboquem o seu amuleto social,
status para publicar na rede, compartilhar no face,
tomara que curtam sua falta de postura, erro cruel

Bafômetro não respira, é bem isso que me dá inspiração,
indignação, que lhe cassem a habilitação!
Sem habilidade nenhuma, quem foi o louco,
aloprado que lhe permitiu a condução?

É recondução de tantas vidas antecipadamente
para a morte, ou para a vida mutilada…
Eu maltrato a língua, a Portuguesa que registre bem:

A revolta deste alguém que despreza compaixão
com assassinos em alta velocidade

Aventureiro das Letras

Eu tenho recebido o toque das artes,
a música que embala o meu coração,
essa sublimação, onde a alma desperta;

Acorda alma minha, acabou o descanso,
até descalço, não que seja um descaso,
eu entro em sintonia com o que vem guardado.

Eu que me julgava um frasco quebrado
tenho me juntado no perfume que fica no ar.
Na melodia, no verso arremesso o que subiu,
a dita espiritual hoje canta pra subir
– e subiu, e tomou o controle do meu destino

E nos olhos, a janela está aberta,
as portas, qualquer que seja a fresta…

Agora a minha vida adormecida
deixou o lado ancião morrer,
a criança quer crescer pé ante pé,
passo por passo quer escalar
a brincadeira de escrever

E vai ficar o sonho, de quando for gente grande,
um pouco mais velho – o corpo, não a mente –
que esta última queira viver o sonho
de transformar a brincadeira num esporte,
aventureiro das letras

Eu te amo, poeta!

Eu te amo, poeta
por dominar as palavras dentro de mim
eu te amo, poeta
por me fazer poesia
sem um verso sequer

Eu te amo, poeta
com a audácia de declar isso
inverso o sentimento nasce em mim

Poeta, cadê a palavra correta?
Eu te amo, já disse,
e direi muitas vezes,
sinto em insistir

Amo os seus versos,
e os seus olhos,
e a sua boca,
e as suas rimas
e também as minhas
por serem suas simplesmente

Eu te amo, poeta
porque ainda me resta loucura,
ainda uso da arte para entregar o coração,
aos pulos, aos prantos, às emoções confusas.

Mas eu te amo, poeta
e esse poema aqui?
Ele só ofusca o que eu ainda não pude dizer
cara a cara sem lirismo nenhum

No abismo frio da fala:
Eu te amo, poeta!
Esperando uma resposta
que talvez não venha
e só isso não me basta

Senão eu também não seria poeta,
pois não precisaria acalmar
minhas inquietudes, pudera!

Se eu estivesse ao seu lado,
nenhum outro verso no papel arriscaria,
seria apenas o risco de viver poesia,
e não descrever desejos!

Sorrindo

Eu não quero voltar
nem para os seus braços,
nem para as suas delicadezas,
nem para aquelas miudezas,
coisas de uma boca pequena

Eu não quero voltar
nem para o seu colo
nem para os seus olhos,
nem para os seus desejos
coisas de um semblante prisão

Eu não quero voltar
nem para as nossas conversas
nem para os nossos planos
nem tão pouco para os sonhos
coisas de um casal apaixonado

Eu não quero voltar
nem para a solidão do par
nem para qualquer ato conjunto
nem para o seu controle imundo
coisas de perseguição

Eu não quero voltar
vou deixar a janela aberta
sem os pássaros eu não vivo
sem o cheiro das rosas não dá
coisas de um dia lindo

Eu não quero voltar sem mim
para viver outro nós, é melhor;
cada um de nós viver só,
só sorrindo

Primata

Só a sua presença basta,
não preciso de nada mais,
apenas nossas trocas de olhares,
nosso romance mudo se descobre
tão falante, já não sou imune

Há coisas que não precisam ser ditas,
a curiosidade nos intriga,
quase não posso controlar
essa minha grande vontade…

Nossas bocas se contraem
para que o coração relaxe,
as mãos se apertam para dar
folga ao sapato contraído

Respirar já não é mais fácil,
cada pedaço de tempo que se passa
é o ar que rasga as nossas vias;
Repertório nenhum nos embala

A afliação, angústia vem da vontade
animal que não sabe como o homem o controla;
São momentos que por ora não cabem reflexão

É seu animal ancestral correndo perigoso,
e eu também me sinto presa, surpresa;
Todos nós estamos sob ameaça,
quero extinção desse frenesi que me paralisa

Mas tenho medo de ser alvo
do primata outro, que me mata de medo
e ainda romantizam isso,
chamando de amor

Obrigado

Quando meu coração está em pedaços,
você tem a capacidade de pegar os cacos
pela metade e de acreditar em mim

Quando o meu coração fica apertado,
você ainda diz que vai conseguir fazer arte de novo,
sopra nesse barro maltratado a esperança,
vem com cuidado lapidando a alma machucada por tanto sofrer

Obrigado é pouco pra você,
pra que eu agradeça por sempre vir
na hora certa me socorrer

Não é preciso muito para curar um coração ferido,
basta apenas um ouvido atento,
e um momento para me reconhecer como irmão

Até os fortes ficam fracos com o peito queimando sem orientação
Obrigado pela sua mão quando eu estava a beira do abismo,
sem condição de seguir sozinho

Casamento no papel

Se a gente não casar de verdade,
eu quero é unir os nossos versos
para pelo menos fazer um matrimônio poético,
tudo em nome do amor

Pode ser que nossas escovas de dentes não se juntem,
mas que as nossas palavras grudem nas nossas vidas…
Porque juntos na poesia eternizamos outra forma,
temos outro meio de perpetuar o nosso desejo,
vivendo a dois no papel

Não é ser cruel com a carne,
não há cheiro, nem toque,
mas as rimas respondem facilmente,
deixemos que elas evoquem outro nível de carinho